terça-feira, 22 de novembro de 2016

Animais Fantásticos e Onde Habitam -- Início modesto, mas satisfatório e bastante divertido

Quem pensa que ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM é uma cópia mal feita de Harry Potter, cujo objetivo é exclusivamente lucrar, ainda que tenha conteúdo vazio, está cometendo um grande equívoco. O filme é original e inovador, ainda que se aproprie do universo mágico de Harry Potter. São várias as semelhanças, contudo, sua individualidade é inegável - o que significa que desconhecer o bruxo com a cicatriz na testa não impede assistir ao primeiro episódio da nova saga.

O ano é 1926; o local, Nova Iorque. Newt Scamander (Eddie Redmayne) é um magizoologista (especialista em criaturas mágicas) que sai do seu país (Inglaterra) carregando uma maleta com incontáveis animais fantásticos - seu objetivo, inicialmente, é um mistério. Por uma sequência de equívocos, que começam quando Newt conhece Porpetina ("Tina") Goldstein (Katherine Waterson) e Jacob (Dan Fogler) - este, um "não-maj", rótulo que substitui o de "trouxa", referente às pessoas sem poderes mágicos -, os animais ficam livres, cabendo ao trio recuperar as criaturas antes que outros não-majs as descumbram. Paralelamente, o auror Percival Graves (Colin Farrell) toma conhecimento do fato enquanto investiga um enigmático ataque à cidade. Todas as histórias se unem em torno do jovem Credence (Ezra Miller), militante que quer retomar a medieval caça às bruxas, em tempos de ceticismo no surreal.

Como se percebe, o longa possui um enredo bem delineado, ao qual falta, porém, contundência temática. Credence - um Ezra Miller desperdiçado, cuja função é relevante apenas no terceiro ato - tem um arco dramático próprio bastante rico, referente a preconceito e abuso infantil (no sentido de violência física e psíquica). Contudo, não há verticalização na abordagem da matéria, provavelmente porque deixaria o filme ainda mais obscuro do que já é. Essa é uma das diferenças em relação à saga Harry Potter: a fotografia acinzentada e a narrativa sem ingenuidade tornam o filme bem mais sério que "... Pedra Filosofal". Aquele fascínio pelo mundo mágico não existe na mesma medida, pois muito que está lá já é bem conhecido. Existe sim um fascínio mágico, como na cena em que Queenie (Alison Sudol), irmã de Tina, mostra habilidades gastronômicas. A agora roteirista J. K. Rowling é criativa e original, conforme se verifica nos "animais fantásticos", nos "obscurus" e mesmo na pena de morte. O contexto da diegese é bem elaborado, mas as mensagens são bastante superficiais. Newt é um defensor dos animais, seria um "ecochato", mas isso fica explícito em um único momento - nos demais, quando ele os protege, parece fazê-lo mais por questões afetivas do que ideológicas. Isto é, o abuso infantil, a intolerância religiosa, a xenofobia e a mensagem ambientalista são temáticas lá presentes, não se pode negar. Entretanto, de maneira bastante superficial. De todo modo, o engajamento ideológico de tolerância se concretiza também com a escalação de Carmen Ejogo como Presidente da MACUSA (Congresso dos Bruxos): uma mulher negra como autoridade máxima da entidade é algo digno de nota.

Para além do problema temático, verifica-se também um problema narratológico: o roteiro é repleto de crateras brechas em seu desenvolvimento, resultado de uma obra pensada para ser uma saga. Seria aplicável a lógica Potter, todavia, como o bruxinho foi pensado inicialmente no formato literário, os encaixes são mais precisos. Aqui, a ideia inicial de três filmes (o que já era bastante) foi abandonada. Claro, é possível lucrar mais com um total de cinco filmes. A questão é: existe tanto para ser contado em cinco filmes? O script propositalmente menciona elementos futuros, em especial as participações de Alvo Dumbledore e Leta Lestrange (esta, a ser vivida pela ótima Zöe Kratitz, que já chega a aparecer). Fica implícito o dizer "vem mais por aí", mas cinco filmes provavelmente acarretará exagero incontestável. Não custa mencionar a rápida aparição de Ron Perlman como Gnarlack, em cena mais do que clichê.

Ademais, há um incômodo paradoxo em "Fantastic Beasts" que corrobora com a teoria da intenção de lucro a qualquer custo. De um lado, são várias as piadas exageradamente infantis, a maioria delas sem graça para quem tem mais de seis anos de idade (cujo ápice é um momento "vergonha alheia" com Eddie Redmayne fazendo movimentos corporais e barulhos absurdamente vexatórios). Por outro lado, reitera-se que paira uma atmosfera sombria, incompatível com o humor tolo da história de Scamander. Por exemplo, Jacob tem uma subtrama pessoal que poderia ser explorada, não fosse a sua função de alívio cômico (embora a comicidade seja apenas teórica).

Até mesmo as personagens coadjuvantes não são muito cativantes. Katherine Waterson interpreta Tina como uma bruxa fracassada, nunca levada a sério e infeliz. Evidentemente, o texto não expõe isso de forma peremptória, mas é uma conclusão inevitável. Por sua vez, Jacob é irritante, não por culpa de Dan Fogler, mas pela personagem em si. Queenie se salva porque Alison Sudol interpreta o papel com charme encantador. Jon Voight está lá apenas porque a produção quis: nada explica um ator do seu quilate escalado para um papel tão insignificante (a não ser que ele tenha mais espaço nas sequências). O lado antagonista é um pouco melhor: Colin Farrell poderia ter feito de Percival um ótimo vilão, pois sua atuação é boa, só não é melhor pelo pouco tempo de tela.

Nada disso se aplica a Eddie Redmayne, ator cujo trabalho não tem uma recepção boa no Brasil, mas que é tido pela maioria maciça da crítica internacional como um dos melhores atores da atualidade. Não havia escolha melhor para Newt Scamander. A caracterização, em especial vestuário e penteado, é compatível com a personalidade introspectiva de Scamander, que considera os humanos as criaturas mais terríveis. A franja de Redmayne e seu olhar oblíquo garantem uma interpretação cirurgicamente contida. É recomendável prestar atenção especial no seu olhar, que nem sempre é dirigido para as pessoas com quem ele conversa, mas sempre focado nos animais fantásticos (ou seja, o ator tem facilidade com a tela verde). Obviamente, sua atuação em "A Teoria de Tudo" é superior, mas Scamander é muito superior ao vexame visto no pavoroso "O Destino de Júpiter". Ou seja, Redmayne não receberia uma indicação ao Oscar por esse filme, mas o trabalho consolida mais sua carreira nivelada por cima. Embora não sejam exatamente personagens, os animais fantásticos também exercem algum encanto, além de representarem o tamanho da fertilidade da criatividade de Rowling.

David Yates, responsável por alguns capítulos da saga Harry Potter, ficou incumbido do primeiro "Fantastic Beasts". A direção de Yates é um show, muito em razão da familiaridade com o universo mágico, mas muito pela competência. A realidade fantástica elaborada é magicamente estonteante, principalmente nas cenas em que aparece o interior da mala de Scamander. Trata-se de um design de produção magnífico, que por si só já faz valer o ingresso. A trilha sonora é bem escolhida, o CGI é sempre convincente - em especial nas cenas de destruição, notadamente as que Yates usa a câmera subjetiva. E mais, o 3D é muito bem utilizado, apesar da pouca profundidade de campo em alguns momentos. Nesse sentido, o uso da letterbox (a faixa preta que fica em cima e embaixo do campo) agrega na sensação de terceira dimensão, estranhamente o recurso é ainda pouco utilizado (mas sempre aquilata a linguagem 3D). 

Em síntese, embora o roteiro seja falho - além de previsivelmente maniqueísta -, o visual do longa é um espetáculo bem orientado por Yates. Aliás, a parceria entre Rowling, Yates e Redmayne deve perdurar. Bem lapidada, pode resultar em um futuro melhor. ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM é um início modesto, mas satisfatório e bastante divertido.

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