quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Estrelas Além do Tempo -- Para sair sorrindo

Não é fácil um feel good movie com fundo social chegar às principais premiações do cinema. A própria noção de feel good soa paradoxal quando se fala em transcendência. Nesse sentido, ESTRELAS ALÉM DO TEMPO tem personalidade própria, fugindo da vala comum do drama melancólico.

Na trama, Katherine (Taraji P. Henson), Dorothy (Octacia Spencer) e Mary (Janelle Monáe) são cientistas trabalhando para a NASA nos tempos da corrida espacial da Guerra Fria. Como mulheres negras, sofrem discriminação e precisam provar o quanto podem contribuir - e entrar para a história dos EUA (afinal, os fatos relatados são reais). Não é difícil chegar à seguinte conclusão: o enredo é excelente e de importância ímpar. Ora, se existiram três mulheres negras (na verdade, foram mais, as três estão no recorte feito pelo roteiro) trabalhando para a NASA, ajudando o governo estadunidense nas empreitadas espaciais, essa é uma história que deve ser publicizada ao máximo. Lutavam contra machismo e racismo em tempos lamentáveis, em que mulheres não tinham voz e negros jamais teriam vez.

E o filme, como não poderia deixar de ser, expõe as discriminações como fatos históricos compatíveis com o contexto da época. Mais o racismo que o machismo, mas ambos estão lá. O abismo no trato das pessoas, comparativamente ao que se vê hoje, chega a surpreender: por exemplo, uma biblioteca pública tinha livros que eram proibidos para negros! Como poderiam crescer e aparecer profissionalmente, se a eles era vedado estudar algumas matérias? Uma das personagens chega a enfrentar as instituições para ter o direito ao estudo - todavia, o roteiro é demasiadamente superficial, dando meras pinceladas sobre isso. Na prática, fica inflado com subtramas que poderiam agregar, mas que são expostas de forma rasa e acabam por retirar o foco do que seria principal. Exemplo claro é o romance forçado para Katherine, que não colabora em nada com a narrativa. Aparentemente, está no texto simplesmente porque filmes leves precisam ter um romance. A artificialidade chega a níveis estratosféricos, com Mary chamando um pretendente para a amiga com um aceno em uma festa da Igreja (algo imaginável hoje, mas não tanto à época).

Em meio à complexidade dos cálculos do trabalho exercido pelo trio, sobre os quais leigos pouco podem entender, há um vislumbre de um plot rico, mas desperdiçado. O uso cômodo das relações pessoais e afetivas fora do trabalho também escancara o péssimo desenvolvimento da narrativa enquanto tal. Katherine, Dorothy e Mary não têm família, respiram o trabalho e limitam-se à NASA, sem problemas pessoais fora do labor. Conflitos familiares? Não para elas. Exceto, é claro, quando o texto atenua a questão principal, sugerindo subtramas para dar a elas soluções simplistas (apagando das personagens o que elas têm de pessoal). Katherine é a principal do trio: mãe viúva, com três filhas ainda crianças. O núcleo é um barril de pólvora para conflitos familiares. Na prática, o desenvolvimento é pífio.

O filme já ganhou o SAG de melhor elenco, ou seja, os próprios atores de Hollywood consideraram que "Hidden Figures" (nome original, como de costume, bem superior) tem o melhor elenco entre os grandes nomes. O trio principal esbanja carismo e tem bastante talento. Taraji P. Henson dá conta do protagonismo, todavia, em razão da dramaticidade rasa do papel, ainda é difícil avaliar seu talento (e a participação no remake de "Karate Kid" ainda é marca negativa no currículo). Sua veia cômica é suave e diverte em especial na linguagem corporal das frenéticas corridas de salto - para além do humor, os momentos demonstram bom desempenho com o corpo (e sem objetificação). Octavia Spencer é um poço infindável de empatia e sua qualidade enquanto atriz já é inquestionável. A carreira de Spencer já teve momentos ruins, porém, "Estrelas Além do Tempo" tem mais uma interpretação sólida, apesar do pouco espaço (comparando com Henson). Espaço ainda menor tem Janelle Monáe, prejudicada bastante por um roteiro que insiste em tornar o papel um vale de frivolidade. O texto também não colabora com Kevin Costner, um chefe que não chefia nada, papel ridículo para um ator consagrado como ele. Pior está Jim Parsons, em atuação frágil de um vilão clichê. Completam o elenco Kirsten Dunst, outra vilã insossa, Glen Powell, que provavelmente é apenas mais um nome constando pela beleza nórdica e não pelo talento, e Mahershala Ali, renegado a uma personagem descartável.

Theodore Melfi segue a cartilha da direção dos filmes embasados em fatos reais (e que não tem muitos segredos). Um aviso no início (sobre a inspiração), letreiro e fotos do desfecho real nos créditos... tudo já visto milhares de vezes. Porém, falta a Melfi um elemento fundamental: a direção é sutil como uma marreta. Quando Katherine entra na sala em que vai trabalhar, seus colegas são apenas homens brancos (exceto por uma secretária, também branca), um deles já presume que ela trabalha na limpeza. Qual a necessidade de algo tão escancarado? O tom já panfletário assume viés ignóbil, pois parte da premissa que o público terá dificuldade para compreender a mensagem. Bastariam as salas com computadores para negros, por exemplo, ou mesmo as cenas em que Katherine vai ao banheiro (o ápice dramático da película reside em um desses momentos). Para piorar, a montagem se esforça para ser um caos: o que justifica a cena do vestido branco?

Apesar das ressalvas, trilha sonora e direção de arte são muito boas. Alinhados à temática da fita, os cenários constantemente esboçam o ambiente científico do trabalho, sem olvidar que se trata da NASA - inclusive, o quarto das filhas de Katherine tem foguetes e estrelas na parede. Os homens usam figurino formal, com gravatas longas e finas como na época, dando verossimilhança. O figurino do trio é eloquente: Mary e Dorothy são extremos, a primeira exibe as curvas e mostra bastante (para a época, claro) do próprio corpo com roupas de cores fortes, o que é condizente com a sua personalidade extrovertida e mesmo expansiva; Doroty, por seu turno, é mais comedida e usa roupas em tons básicos e que pouco exibem do corpo; e Katherine é a que usa as roupas mais formais.

Com as várias ressalvas feitas, ESTRELAS ALÉM DO TEMPO é um passatempo divertido e por vezes engraçado, válido muito mais pelo que tem a dizer do que pela forma como diz. É um filme para sair sorrindo, para elevar o astral do espectador com músicas alegres e leves e um humor também suave. Superficial e raso, como produção, é bastante falho; como entretenimento, porém, é satisfatório.

Um comentário:

  1. Concordo em que este é um filme para sair sorrindo, para elevar o astral do espectador com músicas alegres e leves e um humor também suave. Eu amo ler livros, cada um é diferente na narrativa e nos personagens, é bom que cada vez mais diretores e atores se aventurem a realizar filmes baseados em livros. Também adorei 7 Minutos Depois da Meia Noite é um dos melhores filmes inspirados em livros, porque tem toda a essência do livro mais sem dúvida teve uma grande equipe de produção. É muito inspiradora, realmente a recomendo.

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