segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Jackie -- Vale o ingresso

Mesmo um recorte pequeno pode dar ensejo a uma obra de valor inestimável. JACKIE pode parecer restrito em razão do enredo, contudo, o esmero na produção justifica o ingresso.

De fato, o enredo é pequeno, retratando os primeiros dias após o falecimento do Presidente dos EUA, John F. Kennedy, na perspectiva da sua viúva, Jacqueline Kennedy. Não deixa de ser uma história de luto, enquanto as cinebiografias (mesmo as parciais) preferem histórias de luta. Nesse sentido, o plot serve mais como curiosidade histórica do que narrativa enriquecedora. Do ponto de vista temático, o comunismo como inimigo oculto se faz presente algumas vezes, porém, de forma não tão marcante quanto o receio em relação à mídia, repetido em diversos momentos. Com efeito, Jackie está sendo entrevistada e a entrevista é o fio condutor da narrativa, todavia, são várias as passagens em que ela alfineta o entrevistador, proibindo-o de publicar algumas falas. Há uma espécie de censura ao que ele poderá publicar, tamanha a preocupação da viúva.

Também como estudo de personagem o roteiro funciona bem, sendo perceptível a vulnerabilidade da protagonista, que quer parecer forte, quando, no fundo, está fragilizada e suscetível a variadas interferências externas. Exemplo disso é a mudança de intenção quanto ao enterro, dúvida constante para ela. Evidentemente, a já oscarizada e concorrente mais uma vez Natalie Portman é atração que basta em si mesma, tão notável que é sua interpretação de Jackie. Portman está madura, caracterizada com maquiagem que deixa a sua pele embranquecida (aparência de palidez), bastante magra e com um figurino soberbo que permeia a película. O que se vê não é Portman imitando a persona da ex-primeira-dama: Portman encarna o papel com vivacidade sem igual, apartando o seu ser, então esquecido, para abrilhantar a personagem. Isto é, embora conste a atriz na tela, o que se vê é muito mais Jackie do que Natalie. Enriquece o seu trabalho um impressionante trabalho de voz e de dicção das palavras: sempre com a boca mais aberta, falando para fora, mas comprimindo a própria voz para passar o ar tristonho. E faz isso o tempo todo! Não há nada de papel anterior, nada que seja da atriz: é uma criação dentro de si, uma personalidade inspirada em uma pessoa real, mas que pouco se vincula com o corpo usado. O ápice se dá quando ela descreve o evento principal (o assassinato de Kennedy), com detalhes macabros e dramaticidade intensa, amplificada pelo close em seu rosto. Como detalhe de mise en scène, a direção coloca um cigarro como acompanhante de Jackie, símbolo de racionalidade e de frieza quando necessário. Ainda no que se refere ao elenco, dois nomes merecem menção especial. Como Bobby, irmão do falecido Presidente, Peter Skarsgaard aparece diferente do que costuma, discreto, mas com o olhar sempre expressivo. John Hurt, por sua vez, rende bons diálogos com Jackie como um padre que a aconselha - o ator fará falta.

O filme é o primeiro em língua inglesa dirigido pelo chileno Pablo Larraín, responsável pelo recente "Neruda". Trata-se de uma direção meticulosa e sensível, capaz de criar cenas líricas - como a que a protagonista limpa o sangue do rosto em frente a um espelho -, cenas delicadas - como a que Jackie conta para os filhos que o pai não voltaria mais para casa - e também cenas de precisão técnica (e sem pudores, como se vê na cena do ataque). Larraín filma planos longos estonteantes nas cenas em que Jackie caminha pela Casa Branca, entoada pelos sons dos seus sapatos e por músicas dramáticas. A câmera a filma tanto de costas quanto de frente, com a montagem alternando, de maneira semelhante ao histórico plano-sequência de Kubrick em "O Iluminado". Do ponto de vista artístico, tais planos são os mais belos de toda a fita (inclusive em razão da beleza do cenário, é claro). Não se pode olvidar da maravilhosa recriação do passeio promovido por Jackie na Casa Branca, transmitida pela televisão à época. Narratologicamente, as cenas não agregam ao texto senão enquanto estudo de personagem, entretanto, a montagem contrapõe as tecnologias das épocas de maneira formidável, encantando o olhar do público. Jackie aparece em preto-e-branco em imagem de razão de aspecto menor, mas há alternância com os bastidores, usando a tecnologia da época. Ou seja, quando as imagens são da transmissão televisiva, saem as cores e reduz-se a razão de aspecto; quando o que se vê são os bastidores da transmissão, o que aparece é a tecnologia da época (câmera antiga, operador de boom etc.), mas através das lentes atuais. As sequências, em última análise, constituem uma metalinguagem sobre a tecnologia da filmagem.

O roteiro dá a entender algo obsoleto e até monótono - em especial para quem não atenta para os detalhes da direção, já mencionados. Todavia, a fuga da linearidade cronológica é artifício engenhoso para dar dinamicidade à narrativa. Caso os eventos tivessem sequência cronológica exata, a chance de tornar o longa enfadonho seria maior. Ao revés, a montagem dá saltos temporais, com constantes flashbacks, tendo como base, reitera-se, a entrevista. Como atrativos estão lá também - além da atuação de Portman - o já mencionado figurino esplendoroso (que inclusive repete o vestuário real de Jacqueline) e uma trilha sonora magnífica. As músicas entoam em melodias melancólicas, por vezes similares às de filmes de suspense. Há uma referência a um musical que, pelo que consta, Kennedy gostava, no entanto, a música destoa do ritmo do filme, mais contemplativo. De todo modo, JACKIE vale o ingresso, seja pela curiosidade histórica, seja pela atuação de Natalie Portman, ou mesmo pelo figurino e pela trilha sonora.

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