sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Manchester à Beira-Mar -- Deixa marcas

Nem todos os dramas são trágicos - ou dramáticos, com a licença para tautologia - o suficiente para comover a plateia. Por vezes, histórias tristes não têm tanto impacto. É o caso de MANCHESTER À BEIRA-MAR, que não é tão dramático quanto sugere seu marketing (e também o trailer). Isso não significa, porém, que o filme é inferior. Apenas não é tão intenso.

O longa tem como protagonista Lee Chandler (Casey Affleck), um "faz-tudo" que mora em Boston, longe da família. Lee acaba retornando a Manchester após o falecimento do seu irmão, sendo então obrigado a assumir a guarda do seu sobrinho adolescente. É onde começa o conflito: de um lado, um homem com traumas que o afastaram de um local e seus habitantes (incluindo seus familiares); de outro, um adolescente cuja mãe é uma incógnita e o pai é recém falecido. O potencial é grande e o roteiro dá conta: o texto é excelente.

Em termos narrativos, a caminhada é um pouco lenta, não por isso desinteressante. Cada personagem tem seu arco dramático delineado e desenvolvido, contudo, não é essa a preocupação do plot. Trata-se mais de um estudo de personagens, que são bastante verticalizados na película. A montagem cortada por flashbacks esclarecedores coopera para adentrar na mente e entender seus perfis psicológicos, ocorrendo já no primeiro ato, cuja função é apresentar Lee ao espectador. Por óbvio, a interpretação impecável de Casey Affleck é essencial para o bom desempenho do longa. Ele nunca foi bom ator, mas esse é o papel da sua vida: Lee é retraído, fala para dentro e com voz serena, transmitindo uma introspecção convincente. Parece que Affleck (o novo, não o Batman Ben) nasceu para interpretar Lee Chandler, tamanho o realismo da sua atuação. Da mesma forma, como personagem, Lee tem bastantes virtudes, a principal é, mais uma vez, o realismo: ele é muito humano, com virtudes e defeitos, reconhecendo as próprias fraquezas e os próprios erros. No início do filme, ele está no fundo do poço (limpando o que os outros fazem, no pior sentido da expressão, literalmente), ficando tudo mais palpável com o decorrer da verticalização da sua personalidade. Os coadjuvantes também são ótimos. O jovem Lucas Hedges é uma interessante revelação para os próximos anos - a indicação ao Oscar soa exagerada (o que não é o caso de Affleck, franco favorito, ao lado de Denzel Washington por "Um Limite Entre Nós") -, embora seja cedo para afirmar com veemência tratar-se de um bom ator. Afinal, não se sabe se Hedges interpretou um papel criado ou se agiu como ele mesmo. Em "Manchester", ele está ótimo - e, novamente, muito realista. É um adolescente estereotipado, não em um sentido negativo, mas de credibilidade. Brigar no gelo, ter banda de rock, duas namoradas... nada que não seja crível para um adolescente. Michelle Williams foi indicada ao Oscar pela única cena grandiosa, cena esta em que a atriz mostra todo o seu talento. Randi tem papel pequeno, mas é graças a Williams que ela não passa despercebida. Kyle Chandler tem participação cativante e a sensação de que ele devia participar mais (justamente pelo bom desempenho) é certeira - pois a ideia de uma morte precoce é essa mesma.

Kenneth Lonergan foi responsável pelo roteiro e pela direção, trabalhando melhor como roteirista, embora a direção seja também muito boa. Lonergan escreve um texto inteligente, cheio de camadas e nuances geniais, algo cada vez mais raro. Como diretor, a grande virtude é a elaboração de uma atmosfera implosiva distante do clichê taciturno. Outro teria apostado numa fotografia sombria (ou, no mínimo, nublada) e enquadramentos exageradamente fechados. Lonergan prefere uma fotografia acinzentada em tom claro, gélida, transmitindo tristeza através da frieza nos cenários urbanos. O figurino de frio polar e os cenários na neve corroboram para a climatização proposta. Prevalecem planos fechados, contudo, a pouca profundidade de campo e a razão de aspecto menor tem efeito de redução de espaço das personagens, como se tivessem enclausuradas nas suas tristezas respectivas. Não por outra razão vários planos são filmados de dentro do carro de Lee, passando a sensação de enclausuramento. Os flashbacks, por outro lado, são abertos e mais alegres, com planos no mar esboçando uma aura sacra e de calmaria, incluindo uma música com coral de voz angelical. Se faltou algo na direção, provavelmente foi a filmagem em planos longos e a movimentação da câmera. Podia ser melhor, mas está acima da maioria. A trilha sonora é muito acertada, variando de um alegre Ray e uma intensa Ella Fitzgerald para músicas mais dramáticas (uma ária no enterro não surpreende)  - e tem até Bob Dylan! Tantos atributos acarretam uma magnífica punch scene, chocante para pessoas mais vulneráveis.

O que afasta Lee de Manchester? Como deve seguir a vida após tragédias? MANCHESTER À BEIRA-MAR é um drama que vale a experiência não pela intensidade - PRECIOSA - UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA, por exemplo, é muito mais intenso -, mas pela precisão de uma obra que deixa marcas em qualquer espectador.

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