domingo, 24 de setembro de 2017

mãe! -- Uma genuína obra de arte

Darren Aronofsky é um verdadeiro artista. "Cisne Negro" tinha sido o auge do seu esforço em dificultar a interpretação do espectador; eis que surge MÃE!, seu novo longa, para mostrar o quão habilidosa é a sua mente para criar uma obra de arte genuína. O cineasta é um dos poucos que ainda sabe que qualquer obra de arte é polissêmica, já que é justamente essa a intenção da arte. Pintores de vanguarda, por exemplo, eram criticados por subverter as convenções artísticas até então vigentes, mas é justamente essa a ideia, fazer com que a obra reverbere de maneira diversa para cada pessoa, tanto no sentido intelectivo quanto no sensitivo. "mãe!" (assim mesmo, tudo minúsculo) tem êxito absoluto nessa proposta, todavia, interpretar esse novo mosaico de Aronofsky é uma tarefa bem difícil.

O argumento não diz muito, não parecendo sedutor: a vida de um casal é abalada quando visitantes com intenções escusas chegam para se hospedar na casa. Dizer mais do que isso significaria, sem dúvida, incorrer em spoilers, o que não é a proposta por enquanto (avisarei quando tiver!).

Diante da limitação acerca do plot, há pouco para dizer em uma crítica sem spoilers. Nenhuma personagem do filme tem nome, justamente para reforçar o leque interpretativo. Quando uma personagem conhece outra, diz "prazer em conhecê-la", sem nenhuma apresentar o próprio nome. A protagonista é vivida por Jennifer Lawrence, em um papel diferente de todos que assumiu na carreira até agora. Lawrence está acostumada com mulheres fortes, decididas, de personalidade marcante; desta vez, ela é uma mulher mais frágil (e ela suaviza a voz para enfatizar a vulnerabilidade) e passiva, passando a imagem de castidade, o que é corroborado pelo vestuário de cores claras, normalmente na cor branca. Ela tem excelente interpretação de uma mulher que é esposa dedicada e apaixonada pelo marido, mas o destaque mesmo é a suavidade do seu trabalho.

O marido é interpretado por Javier Bardem, que faz um homem altruísta e gentil, em grau tão extremo que o torna estranho. Ele também faz um ótimo trabalho, ainda que distante do seu melhor, até porque ele é propositalmente ofuscado pela protagonista, em razão da maneira como Aronofsky dirigiu. A câmera é fixa na personagem de Lawrence, filmando-a de costas (e a acompanhando), em planos fechados, ou com closes em seu rosto. A ideia é colocar o espectador na posição dela, para que sinta as dores dela. E isso dá muito certo: o filme é incômodo, desconfortável, impressionante e enervante. Essas são sensações que a personagem de Lawrence sente, juntamente com o público. Isso é mérito da direção, que, ao fixar-se nela e colocar a obra do ponto de vista dela, facilita a identificação cinematográfica secundária. A personagem não entende quase nada do que está acontecendo. Assim como o público.

O elenco ainda conta com outros grandes nomes como Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Domhnall Gleeson (em participação relâmpago e bem intensa), seu irmão (na arte e na vida) Brian Gleeson e Kristen Wiig. São todos desagradáveis para a personagem de Lawrence, mas bem acolhidos pela personagem de Bardem. Quando a personagem de Ed Harris aparece, por exemplo, é intitulado como "um médico", não "um estranho". Na verdade, ele se encaixa nas duas descrições.

A narrativa é tão absurdamente esquisita que se torna cômica em alguns momentos. Em outros, é assustadoramente chocante e poderá desagradar boa parte da audiência. Sem trilha sonora, o já mencionado diretor e roteirista Darren Aronofsky investe em sons intradiegéticos (em especial da natureza, o que faz todo sentido), bem como uma fotografia escurecida, usando luz amarela para iluminar a casa onde se passa a película. Nas últimas sequências, o filme vai se tornando mais e mais perturbador: é um filme insano, muitíssimo bem produzido e, no final das contas, brilhante, algo que só uma mente genial como a de Aronofsky poderia fazer.

Os destaques em amarelo podem soar contraditórios, mas têm o objetivo de preparar o leitor do Recanto para assistir a "mãe!". Não se trata de um filme convencional, é um drama com momentos de suspense e considerável violência (não apenas no sentido físico), logo, não serve para qualquer espectador. A ambição do cineasta foi tão grande que pode afastar pessoas mais sensíveis, que precisam ser alertadas. E mais: não é um filme de fácil compreensão, a maioria das pessoas sai da sessão afirmando não ter entendido nada. Isso é normal, ele precisa ser refletido ou até mesmo explicado, porque não é claro em praticamente nada (o que é ótimo, pois exige uma atividade do admirador da obra de arte). Entretanto, nada disso muda o fato de que ele é extraordinário, pois tão rico em metáforas e simbologias que são incontáveis os significados que podem ser extraídos da obra. Tudo foi meticulosamente inserido de modo a garantir que cada pessoa interprete da sua forma, não havendo a interpretação correta. Feitas todas essas ressalvas, a conclusão é que "mãe!" deve ser visto, pois não existe nada comparável a essa fascinante alegoria.

--
Encerrada a crítica sem spoilers, aqui começam algumas reflexões COM SPOILERS sobre "mãe!". Sem a pretensão vã de esgotar as possibilidades interpretativas de uma obra tão rica, cabe dividir algumas conclusões.

Cada pessoa vai ter a sua interpretação, pois cada referente dá ao significante um significado diverso. Contudo, considerando a afeição de Aronofsky pelas temáticas bíblicas, a estrutura narrativa de "mãe!" incorpora passagens da Bíblia, algumas bastante claras. A personagem de Bardem é Deus, o Criador, que, como tal, cria toda a casa e até mesmo a personagem de Lawrence - que, por sua vez, é a "Mãe Natureza". É por isso que Bardem diz "eu sou o que eu sou", referindo-se a si mesmo, no final, afirmando a Lawrence que "você é a casa". Mais precisamente, a casa é a Terra, enquanto Lawrence é a natureza: quando a personagem sofre, repercute no local (como aqueles terremotos). As duas estão conectadas como se fossem uma só, ambas criadas, claro, por Deus - que recomeça tudo ao final, depois que acontece o apocalipse. Ed Harris é Adão, o primeiro homem que chega na Terra. Como Eva é feita de uma costela de Adão, ele tem uma cicatriz na região (que Mãe vê). No dia seguinte, chega a primeira mulher na Terra, que é Eva. Como eles comem do fruto proibido (quebram a pedra), são expulsos do paraíso (Deus/Ele/Bardem tranca aquele aposento específico). Mais para frente, aparecem seus filhos (os irmãos Gleeson): um deles tem inveja do outro e acaba o matando. Representam, evidentemente, Caim e Abel. Outras pessoas chegam na casa - recepcionadas por Deus, pois Ele é bom e receptivo -, a Mãe Natureza não gosta da sua presença e fica mais incomodada com o comportamento das pessoas, cada vez mais nocivo, destruindo a Terra/casa. A situação vai piorando até se tornar caótica, com as pessoas brigando entre si e se matando: é a representação da humanidade não apenas destruindo o Planeta mas também brigando entre si. Nasce o filho de Deus, Jesus. O problema é que Deus, de maneira ingênua, confia nas pessoas, entregando seu filho para elas. O filho morre, sendo comidas suas partes (o corpo e o sangue de Cristo). Mãe fica devastada, reage, mas acaba sendo vencida pela fúria dos homens, agressivos com a Natureza. Deus a protege, até que ela se enfurece definitivamente e queima (destrói) a casa, com todos que estão dentro. É o apocalipse! Todos morrem, exceto Deus, que tira dela algo como a fonte da vida, para recriar tudo e recomeçar tudo. Como Ele mesmo diz, Ele a leva ao começo. O Planeta foi destruído, mas Deus o reconstruiu para recomeçar. É uma versão adaptada por Aronofsky da Bíblia, mais uma vez livremente adaptada, como ele havia feito em "Noé".

E qual a mensagem do filme afinal? Depende do referente, como já dito. Minha primeira interpretação, a mais impulsiva, aquela que surgiu após os primeiros minutos de reflexão, é a seguinte: se a humanidade continuar agindo da forma que age, a mãe natureza vai se enfurecer e acabar com ela. O nome do filme e a relação da personagem de Lawrence com a casa me fez ter essa conclusão. As pessoas destroem o Planeta, o maltratam, não ligam para os danos que causam e continuam causando mais. Como se não bastasse, são inimigas entre si, fazem guerra, fomentam o ódio e a violência. Tratam a Terra não como um lar que precisa ser cuidado, mas sem olhar para as consequências.

Entretanto, isso não explica a participação do casal do início. O homem que Ed Harris interpreta é um fã do poeta vivido por Bardem, depois, mais fãs surgem. Ou seja, é possível extrair também a mensagem sobre a vida de uma celebridade, no aspecto referente ao assédio dos fãs, que não lhes dão espaço. Alguns fãs não conseguem conter a própria emoção e acabam agindo de maneira desmedida com o ídolo, como o filme retrata, de uma maneira exagerada. No que se refere ao sofrimento da personagem de Lawrence, é uma referência ao tratamento cruel dado às mulheres, em especial às donas de casa, cuja opinião é irrelevante (o marido nunca a consulta antes de aceitar hóspedes), cujos direitos são restringidos algumas vezes (ele não quer que ela beba álcool) e cuja função é apenas cuidar da casa (incessantemente) e dar à luz.

Não existe interpretação correta sobre "mãe!", mas é enriquecedor compartilhar interpretações. Quanto mais eu penso nesse filme, mais ideias surgem. A ideia de Aronofsky era deixar o espectador refletindo. Conseguiu.

2 comentários:

  1. Muito interessante apesar de aparentar ser bem esquisito... vou ver...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Veja e tire as suas conclusões. E não se esqueça de voltar aqui para compartilhar!

      Excluir