quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O Insulto -- Orgulho e preconceito libanês

Se não fosse encaminhar para um equívoco interpretativo, já que existe obra homônima (clássica, inclusive) cujo teor é bastante distinto (um romance), O INSULTO facilmente poderia se chamar "Orgulho e Preconceito", pois é uma obra que fala sobre orgulho e sobre preconceito. É um estudo sobre a natureza do homem que, de tão vil, deixa a teimosia assumir proporções irracionais. De maneira inteligente, o filme também mostra que não existe uma verdade, mas pontos de vista sobre os fatos.

Dessa breve introdução, não é difícil perceber que a grande força da película reside em seu roteiro. A sinopse oficial se revela reducionista e, portanto, enganosa: "em Beirute, um insulto explosivo leva Toni, um cristão libanês, e Yasser, um refugiado palestino, para o tribunal". Embora seja isso que aconteça, há muito mais no longa.

De fato, tudo começa por um insulto de um, fazendo com que o outro exija um pedido de desculpas. Porém, o roteiro não é simplista em momento algum, deixando claro que o insulto não foi desmotivado, ainda que eventualmente desproporcional. Isto é, não que o xingamento fique justificado, mas ele é resultado de um ato reprovável do indivíduo xingado. O mais interessante é que o texto faz do argumento um efeito "bola de neve": tudo vai piorando para ambos, tanto no âmbito pessoal quanto no familiar. Semelhante (só talvez não tão absurdista) a "Relatos Selvagens", algo aparentemente pequeno toma proporções cada vez maiores em razão da teimosia dos envolvidos. O que é bastante verossímil. Terceiros tentam intervir, em vão, pois impera o orgulho dos dois - logo, o discurso segundo o qual "para algumas pessoas, é difícil se desculpar, o que não significa que não reconhecem seus erros" acaba sendo inócuo. Um pedido de desculpas é encarado como sinal de fraqueza e nem é preciso dizer o quão comum isso é na sociedade - seja no Líbano, seja no Brasil.

A "bola de neve" toma proporções gigantescas e rapidamente o filme se torna, em parte, um drama de tribunal. O orgulho de Toni e Yasser é em grau tão expressivo que dispensam advogados enquanto podem. Nos momentos perante o Judiciário libanês, o encaminhamento do texto é muito inteligente e bem conduzido, utilizando o poder argumentativo com base no próprio enredo, deixando para o próprio espectador decidir. É onde fica realçado o subtexto da discriminação em relação aos palestinos, que, refugiados no Líbano, sofrem bastante preconceito perante os cidadãos cristãos. Há uma rixa histórica e o roteiro explora seu máximo potencial, da manipulação midiática à reverberação perante o povo e na seara política.

E a argumentação é exitosa, no mínimo, ao instigar a reflexão no espectador. Os palestinos são um povo excluído, mas ninguém tem o monopólio sobre o sofrimento, isto é, ninguém é vítima sozinha - é o que diz a obra. Não são eles os únicos oprimidos e a opressão não é justificativa para recorrer à violência (de nenhuma forma). Por outro lado lado, quando uma pessoa é provocada em seu íntimo, atos irracionais ocorrem e ninguém deve ser submetido à inércia. Quem está com a razão? É uma questão de perspectiva, sendo inviável concluir de maneira peremptória: tudo é relativo, já dizia Einstein. Os dois têm um pouco de razão e os dois cometem muitos erros, é essa a falibilidade humana que o filme expõe. Nem tudo é preto e branco, existem nuances que precisam ser consideradas, fatores alheios às aparências - ou, no velho jargão popular, "toda história tem dois lados".

Do ponto de vista narratológico, é verdade que há um subplot desnecessário entre pai e filha, sem relevância, que incha mais o longa. Nesse sentido, a direção de Ziad Doueiri tem momentos de quebra de ritmo e seu filme devia ser um pouco mais curto. Por outro lado, o script tem um plot twist que, em tese, tornaria Yasser e Toni mais inimigos, contudo, na prática, faz com que eles fiquem mais brandos na disputa. O que é importante é que a obra cria um emaranhado cujo desfecho é claramente satisfatório para as personagens e, dentro da própria diegese, é bastante coerente. Porém, para o público, talvez fique a sensação de incompletude.

Yasser e Toni são excelentes personagens, mas não seriam tão bons não fosse o trabalho convincente dos atores responsáveis por interpretá-los - respectivamente, Kamel El Basha e Adel Karam. O primeiro é mais contido, precisando demonstrar a personalidade implosiva de Yasser através, principalmente, do olhar. Contudo, em uma de suas últimas cenas, o sorriso irônico é fundamental para mostrar seu objetivo naquele momento - também o cigarro é um bom elemento inserido na mise en scène. Quanto a Karam, a expressão sempre séria e até de revolta lhe dá uma aparência de brutalidade, todavia, é na companhia da esposa que ele revela a sua fragilidade, em momentos cruciais.

Doueiri não é um diretor inexperiente, mas é o primeiro a fazer com que o Líbano tenha um filme indicado ao Oscar (na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira). Existem alguns erros, como a superficialidade na abordagem do relacionamento familiar de Toni e os fade outs aleatórios da montagem, porém, sua obra é razoavelmente original e muito inteligente. Consegue unir as peculiaridades de um local com comportamentos praticamente universais. "O Insulto" é "Orgulho e Preconceito" libanês: sem romance, uma crítica realista e ácida à humanidade do homem.

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